“Precisamos compreender que a inclusão de um profissional trans não termina na contratação,” diz Danielle Torres
Danielle Torres, considerada a primeira executiva assumidamente trans do Brasil, é uma referência para profissionais transgêneros que buscam espaço e afirmação no mercado de trabalho. Isso porque não são todas as pessoas desse grupo que chegam a ter uma graduação ou a assumir um cargo de liderança. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra), apenas 72% delas completam o ensino médio e 0,02% estão nas universidades.
Apesar do número de contratações ter aumentado nos últimos anos, o crescimento ainda é lento e nem sempre as empresas proporcionam uma atmosfera acolhedora e que permita o desenvolvimento da carreira desses colaboradores.
“Precisamos compreender que a inclusão de um profissional trans não termina na contratação. Apesar de importante, esse é só o primeiro passo. No dia a dia, a pessoa poderá estar sujeita ao julgamento de colegas que podem não entendê-la a partir de um ponto de igualdade. Reconhecer isso é importante para planejar e realizar o acompanhamento da sua carreira. Não digo que devem existir situações para privilegiar essa profissional, mas sim para reconhecer que ela inicia sempre de uma posição de desigualdade. O seu desenvolvimento rumo à liderança dificilmente acontecerá de maneira orgânica”, explica Danielle, que atualmente é sócia de Práticas Profissionais da KPMG no Brasil.
“Existem inúmeras pautas para a comunidade nesse momento que são urgentes, e o dado da Antra dá a dimensão da situação. Portanto, a solução não será simples ou rápida, mas isso não impede que cada um de nós faça sua parte”, complementa.
Em entrevista ao Movimento Mulher 360, a executiva conta como foi o seu processo de afirmação de gênero dentro da KPMG, e dá dicas para profissionais trans que estão ingressando no mercado de trabalho ou ambicionam um cargo de liderança, além de recomendações para que as empresas sejam mais inclusivas. Confira.
MM360 – Quando você entrou na KPMG, em 2005, já havia uma abertura para a agenda da diversidade e inclusão na companhia. Como isso impactou na sua trajetória profissional e de que forma esses temas evoluíram internamente ao longo dos anos?
Eu não fui consciente do meu gênero por quase metade da minha carreira com a KPMG. Isso não significa dizer que as pessoas a minha volta não notavam diferenças em meus comportamentos. Então, sempre tive consciência que seria importante trabalhar em uma organização que tivesse como foco privilegiar as minhas competências para que eu progredisse na carreira. Claro que a pauta de diversidade e inclusão feminina sempre foram prioritárias para mim. Naquilo que dependesse da socialização masculina clássica eu sabia que começava a minha carreira em desvantagem – não apreciava futebol, bares ou ambientes de consumo de carne.
Tinha consciência que eu enfrentaria maior dificuldade em estabelecer relacionamentos em ambientes que fossem prioritariamente masculinos e não vislumbrassem uma agenda de mudança. A KPMG, muito à frente do seu tempo, durante os anos 2000, quando a temática LGBTQIA+ ainda era pouco comentada nas empresas, já possuía um sócio abertamente homossexual. Assim, eu sabia que encontraria na KPMG o palco para desenvolver minhas aptidões ainda que não soubesse explicar plenamente as razões, naquele momento incipiente. Com o tempo, notei uma evolução natural no tema de diversidade na KPMG e abrangência das políticas da organização. Importante ressaltar que as sementes já estavam plantadas há muito tempo.
MM360 – Você é uma referência para profissionais transgêneros que buscam espaço e afirmação no mercado de trabalho. Que conselhos você dá a quem está iniciando uma carreira agora e para quem almeja um cargo de liderança?
Precisamos reconhecer que o caminho não será fácil para nós. E não digo isso para desanimar ninguém, mas para que entendam que a luta e superação de desafios fará parte constante na nossa vida para conseguirmos alguma posição. A transfobia no social é marcante e provavelmente continuará a ser durante toda a minha carreira profissional.
Assim, minha melhor sugestão é que os profissionais trans procurem se especializar e se diferenciar constantemente. A não ser que trabalhem na área de diversidade ou correlata, procurem não fazer do (trans)gênero o assunto principal de suas carreiras. As pessoas podem ter curiosidades, mas entendo que estamos em uma organização para desenvolvermos nossos talentos em nossa área de especialização e não para guiarmos políticas LGBTQIA+.
Além disso, evite pessoas que praticam micro agressões. Acredite, elas são a minoria. Apoie-se na imensa maioria de profissionais que estará lá para acolher você. Acima de tudo, escolha uma organização que esteja interessada no seu desenvolvimento e abertamente apoie a diversidade. Em muitos momentos precisaremos trilhar caminhos desconhecidos e ser “a primeira pessoa trans” a realizar algo. Caminhar ao lado de pessoas que querem nosso bem-estar fará com que a jornada seja mais proveitosa.
MM360- Muitas empresas criam ações afirmativas para aumentar a presença da comunidade LGBTQIA+, mas deixam de preparar suas equipes antes da chegada desses profissionais. E, quando já estão na companhia, não planejam o desenvolvimento de suas carreiras. Como a liderança pode se engajar com essa causa e gerar, de fato, a inclusão, principalmente de pessoas trans?
Em primeiro lugar, precisamos compreender que a inclusão de um profissional trans não termina na contratação. Apesar de importante, esse é só o primeiro passo. No dia a dia, a pessoa poderá estar sujeita ao julgamento de colegas que podem não entendê-la a partir de um ponto de igualdade. Reconhecer isso é importante para planejar e realizar o acompanhamento da sua carreira.
Não digo que devem existir situações para privilegiar essa profissional, mas sim para reconhecer que ela inicia sempre de uma posição de desigualdade. O seu desenvolvimento rumo à liderança dificilmente acontecerá de maneira orgânica.
Um exemplo é que enquanto alguns profissionais cis estarão pensando onde vão realizar aquele intercâmbio dos sonhos, muitas pessoas trans estarão imaginando se serão constrangidas durante o uso do vestiário da empresa e se há condições mínimas de segurança para ir e vir do trabalho.
A perspectiva de carreira que essa profissional traz em si, em termos de sua confiança de até onde poderá chegar, provavelmente será menor do que os seus pares cisgêneros. Do ponto de vista da gestão dessas profissionais, um programa de aliados na liderança pode beneficiar que mais líderes reconheçam que possuem vieses e passem a agir para mitigá-los no dia a dia. Privilegiar que a pessoa trans trabalhe com gestores que são aliados pode facilitar o desenvolvimento de sua carreira.
MM360 – Quais recomendações você dá para as companhias que querem começar a trabalhar com esse pilar de diversidade?
Informem-se, e muito. Diversidade e Inclusão é sobre garantir um ambiente de equidade em que todas as pessoas possam se desenvolver de maneira justa. Existe uma assimetria do ponto de partida de cada um de nós. Não esperem que pessoas que pensam de maneira semelhante e possuem uma característica social homogênea encontrarão por si as respostas para implementar adequadamente um programa de D&I. Contratem especialistas, se necessário for. Incluir é o certo a se fazer em primeiro lugar. Mas lembrem-se que em uma época de redes sociais, o consumidor é diverso e espera encontrar diversidade nas organizações das quais é cliente.
MM360 – Apenas 0,02% da população trans está cursando o ensino superior, segundo dados divulgados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). De que maneira as empresas podem contribuir para aumentar esses números e apoiar a qualificação profissional?
A dimensão da inclusão da pessoa trans é para toda a sociedade. A exclusão trans muitas vezes tem início no abandono da família e evasão escolar. Ainda, a transfobia acompanhará a pessoa por toda a jornada e dificultará a sua inclusão em diversos contextos. As empresas podem, além de revisitar os seus processos de atração e contratação de talentos, ter ações diretas como patrocínio de cursos pré-vestibular, idiomas, entre outros. Preciso ressaltar que existem inúmeras pautas para a comunidade nesse momento que são urgentes, e o dado da Antra dá a dimensão da situação. Portanto, a solução não será simples ou rápida, mas isso não impede que cada um de nós faça sua parte.