“Quando uma pessoa trans se movimenta, a sociedade inteira se movimenta em um caminho de mais respeito, de mais dignidade e mais justiça social”, afirma Noah Scheffel
No mês em que é celebrado duas décadas do Dia Nacional da Visibilidade Trans no Brasil, o país se depara com um desafio alarmante: continua sendo a nação com o maior número de assassinatos de pessoas trans no mundo. Nesse contexto, a busca por equidade, inclusão e respeito para essa parcela da população permanece uma luta urgente e essencial.
Em meio a esse cenário, o Movimento Mulher 360 entrevistou Noah Scheffel, fundador e CEO da EducaTRANSforma e destaque na lista “Over 30” da revista Billboard Brasil. A conversa abrange desde a relevância das cotas em universidades federais até estratégias concretas para promover uma verdadeira inclusão nas organizações, além de dicas para quem está ingressando no mercado de trabalho ou almeja um cargo de liderança.
“Não adianta apenas contratar uma pessoa trans e afirmar que a organização é representativa. Isso cria uma representação superficial, colocando a pessoa em uma posição de token, sem refletir a verdadeira diversidade. Representatividade está diretamente ligada aos percentuais na sociedade de pessoas com determinados marcadores sociais. Se a organização não atinge esses percentuais, seja em relação a raça, deficiência, pessoas LGBTQIAPN+, pessoas trans, entre outros, ela não é tão diversa como deveria ser e, portanto, não alcança um verdadeiro nível de inclusão”, diz o executivo.
Confira a entrevista na íntegra e explore as percepções e experiências de Noah Scheffel, cujo compromisso com a inclusão e aceitação se destaca como um chamado urgente por transformações significativas em nosso cenário social e corporativo.
Como surgiu a EducaTRANSforma?
A Educa Transforma começou em 2019, depois que eu passei pelo processo de transição social de gênero e comecei a me identificar socialmente como homem trans no mercado de trabalho. E foi muito violento todo esse processo. Mesmo ocupando um cargo de liderança, enfrentei várias situações de transfobia organizacional, e a maioria delas vindo da direção de RH, que deveria cuidar das pessoas. Já que eu liderava equipes bem diversas, quando alguém da direção não conseguia me atingir, acabava atingindo membros das minhas equipes que eram de grupos sub-representados e minoritários.
Toda essa carga se tornou demais para mim, chegando a um ponto em que não aguentei mais o desgaste provocado pela transfobia, racismo e capacitismo. Foi aí que precisei de uma internação psiquiátrica. Durante esse período, prometi a mim mesmo que, ao sair de lá, faria algo para ajudar outras pessoas trans, para que não passassem pela exclusão do mercado de trabalho e tivessem acesso a um ambiente de trabalho inclusivo, sem as violências que eu enfrentei.
Quais são os pilares de atuação e de que forma a iniciativa contribui para inserir profissionais trans no mercado de trabalho?
Desde o início, focamos em formar pessoas trans em trilhas de tecnologia e inovação. No primeiro ano, em 2019, consegui formar oito pessoas trans nessas trilhas de tecnologia de desenvolvimento de software e colocá-las no mercado por meio de parcerias com empresas que apoiavam o projeto. Em troca, eu fazia diagnósticos e treinamentos para tornar os locais de trabalho mais inclusivos e acessíveis para que, quando essas profissionais estivessem prontas, a organização também estivesse pronta ou o mais pronta possível, para receber essas pessoas de forma segura.
Depois da pandemia, a procura por parte das alunas cresceu bastante, e então precisei adaptar o Educa Transforma para um formato online, o que permitiu a participação de pessoas de praticamente todos os estados do Brasil. No final do ano passado, conseguimos capacitar, formar e conectar ao mercado de trabalho mais de 1.500 pessoas trans. É um número bem expressivo de crescimento, tenho bastante orgulho de ter conseguido fazer isso, apesar de saber que ainda há muito a ser feito.
Apenas 0,02% da população trans feminina tem graduação completa, dificultando o acesso ao mercado de trabalho. Para mudar essa realidade, existem cotas em universidades federais brasileiras. No entanto, poucas instituições possuem essa política afirmativa na graduação. Como você analisa essa situação e como o mercado pode contribuir para o desenvolvimento, atração e retenção desses talentos?
Há um número muito grande de pessoas que são evadidas da escola por violências que passam dentro do ambiente escolar, e não conseguem terminar o ensino fundamental ou o ensino médio. Chegar na graduação já é quase que uma vitória. Na verdade, para pessoas trans, é uma vitória, porque a exclusão da educação começa muito antes de se chegar a uma faculdade.
Eu acredito que, sim, esses movimentos precisam existir para que as pessoas que conseguem terminar o ensino médio consigam entrar, de uma forma justa e equânime, na graduação e consigam adentrar o mercado de trabalho de uma forma mais confortável. É muito importante que existam essas movimentações de cotas, e eu sou uma pessoa que acredita muito que é necessário que aconteçam além da esfera federal, que esses mesmos movimentos existam para a esfera privada também, não apenas na esfera pública.
Muitas empresas querem atrair profissionais da comunidade LGBTQIAP+ devido às práticas de DEI, mas poucas investem para que essas pessoas possam assumir cargos além das vagas de entrada ou focam exclusivamente em colaboradores trans. Quais são as recomendações para transformar esse cenário e aumentar o número de organizações que apoiem, de fato, essa parcela da população?
Precisamos entender que muitas pessoas por partirem de locais diferentes de acesso e oportunidades, precisam de mecanismos de equidade para que possam se desenvolver dentro das empresas da mesma forma que outras pessoas já se desenvolvem, porque tiveram a oportunidade de ter experiências prévias como graduações, cursos e tudo mais, além de não serem vítimas de preconceito, exclusão na educação ou em outros espaços sociais. As organizações têm a obrigação de criar esses mecanismos de equidade, e aqui saliento que não estou falando de igualdade, porque não somos todos iguais. Somos todos diferentes. Cada pessoa parte de um lugar, e mecanismos de equidade olham justamente essas diferenças e, aí então, balizam os seus parâmetros para criar esses mecanismos onde todas as pessoas vão poder chegar no mesmo lugar com assistências e mecanismos de equidade, que são necessários para que todas as pessoas tenham as mesmas chances depois de entrarem no mercado.
Há um artigo da sua autoria, publicado no ECOA, do UOL, intitulado “Você não colocaria um yorkshire num canil com 500 pitbulls”, que fala sobre as empresas atraírem profissionais trans sem preparar o ambiente interno. Como preparar a organização para receber profissionais trans?
Para preparar a organização para receber profissionais trans, o indicado é buscar consultorias ou empresas formadas por pessoas trans. Isso possibilita uma perspectiva que realmente regulariza tudo o que é necessário, oferecendo palestras, treinamentos e formações. Além disso, é essencial cuidar do treinamento e desenvolvimento interno das pessoas trans contratadas e cuidar de programas específicos para a contratação intencional de profissionais trans.
Não adianta apenas contratar uma pessoa trans e afirmar que a organização é representativa. Isso cria uma representação superficial, colocando a pessoa em uma posição de token, sem refletir a verdadeira diversidade. Representatividade está diretamente ligada aos percentuais na sociedade de pessoas com determinados marcadores sociais. Se a organização não atinge esses percentuais, seja em relação a raça, deficiência, pessoas LGBTQIAPN+, pessoas trans, entre outros, ela não é tão diversa como deveria ser e, portanto, não alcança um verdadeiro nível de inclusão. Diversidade e inclusão são conceitos distintos, e a organização precisa ir além de apenas trazer uma amostra da diversidade para dentro. Deve buscar verdadeira representatividade e que reflita os grupos sub-representados na sociedade atual.
De que maneira empresas podem atuar para reduzir e eliminar a discriminação e investir na equidade de oportunidades em relação à identidade de gênero?
Como mencionei anteriormente, ao falar sobre a entrada das pessoas e a falta de comprometimento das organizações, vejo que a única forma verdadeira seria a existência de uma legislação, assim como temos hoje para pessoas com deficiência, para a inclusão de pessoas trans no mercado de trabalho. Sabemos muito bem o que acontece com as pessoas com deficiência que entram no mercado e acabam ocupando apenas cargos operacionais, mas isso é uma obrigação da organização, comprometer-se com a pauta de diversidade e desenvolver esses talentos com base em equidade.
Acredito que o mesmo deve ser feito para a população trans, pois de forma alguma conseguiremos sair dos dados de empregabilidade quase nula para pessoas trans se as organizações não forem obrigadas a realmente contratar esses profissionais. O estigma e o preconceito são muito grandes, e o que temos hoje é que, ao buscar por uma vaga trans numa organização, a pessoa que está procurando busca alguém que tenha uma passabilidade ou que se pareça o máximo possível com uma pessoa cisgênero, possivelmente alguém que já estava no mercado de trabalho. Isso, por sua vez, fomenta o turnover.
Qual conselho você dá para profissionais travestis e trans que estão entrando no mercado de trabalho e para quem ambicionam um cargo de liderança?
Um conselho que eu sempre dou para as pessoas que estão entrando no mercado de trabalho é para que criem suas redes de segurança. Buscar outras pessoas que façam parte dos mesmos marcadores sociais para se fortalecer é importante para que não se sintam sozinhas dentro desse mercado, dentro dessa organização, porque às vezes realmente nos vemos isolados, sozinhos, sem entender que caminhos seguir.
Para quem tem ambição de chegar em cargos de liderança, realmente é olhar para as organizações e ver quais estão tratando a diversidade como uma pauta séria. Aí, a gente vê que são organizações que têm programas de desenvolvimento para liderança, por exemplo, desenvolvimento para liderança de pessoas negras e da comunidade LGBTQIAPN+. Essas organizações que têm esses mecanismos de equidade são organizações que vale a pena investir para se ter uma carreira.
Como profissional reconhecido na lista “Over 30” da revista Billboard Brasil, você pode compartilhar suas percepções sobre o impacto pessoal desse reconhecimento e discutir como essa visibilidade pode contribuir para a aceitação e representatividade dos profissionais trans no ambiente corporativo e na sociedade em geral?
Fazer parte dessa lista é mostrar que estou no caminho correto, por mais cansativo e exaustivo que seja na maior parte do tempo. Um trabalho que vale a pena e que precisa continuar sendo feito, porque eu paro muito para perguntar “se eu não fizer, quem pode fazer?”. Mas olhando essa lista eu vejo que tem muita gente fazendo também. E o quanto é importante que cada um de nós faça a nossa parte, apesar das dificuldades, dos não acessos que a gente tem e os que já conseguimos conquistar.
E a gente precisa falar sobre isso. Precisamos ter essas listas para ter visibilidade enquanto um grupo social que existe, mas que é tão jogado de lado para não ser visto, para não ser notado, para não ser contratado, para realmente não existir. É algo que muda o cenário para gente enquanto pessoa trans, traz uma visibilidade gigante sobre as nossas vidas e enquanto a gente ainda está em vida. Porque o que a gente está mais acostumado a ver é os nossos indo, as vidas dos nossos sendo retiradas. E uma lista dessas em que se celebra a vida das pessoas, ou enquanto elas estão em vida, é algo que eu não tinha visto ainda nem em outros países. E para mim é algo que eu tenho muito orgulho. Comprei vários exemplares da revista, inclusive, para dar para amigos e familiares para que mais pessoas tenham acesso a essa informação e conheçam as pessoas que estão mudando esse mundo que eu faço parte. Mas, também, mudando o mundo para melhor, porque quando uma pessoa trans se movimenta, a sociedade inteira se movimenta em um caminho de mais respeito, de mais dignidade e mais justiça social.
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