“Precisamos fazer com que as meninas tenham cada vez mais modelos a seguir”, afirma Patricia Novais
Em conversa com o Movimento Mulher 360, Patricia Novais, doutoranda de astrofísica do IAG/USP, fala sobre as adversidades em sua vida pessoal e familiar, que não impediram sua trajetória profissional nos últimos 13 anos. Ela conta como surgiu seu interesse por física e astronomia, fala de sua atuação no mercado de trabalho hoje, como enfrentou desafios por ser mulher numa área predominantemente masculina e sobre empoderamento feminino. Confira.
Movimento Mulher 360: Poderia nos contar como iniciou seu interesse por Astronomia e como fez para tornar esse sonho realidade?
Patricia Novais: Quando eu era criança, minha família costumava fazer muitos passeios para o litoral e para o interior. Nesses passeios, meus pais sempre ensinaram a mim e meus irmãos a beleza que era admirar a natureza. Ainda, diversas vezes, eu e meus irmãos subíamos com meu pai na laje de casa para ficarmos deitamos observando o céu contemplativamente. Foi assim que eu tive meus primeiros contatos com a beleza da natureza, do céu, do universo.
Quando eu estava no último ano do ensino fundamental, eu tive acesso a um livro de física do ensino médio e simplesmente me encantei com a possibilidade de entender, conhecer e descrever a natureza através da física. Quando, no início do primeiro ano do ensino médio, eu tive minhas primeiras aulas de física, eu decidi que essa seria minha carreira.
Mas foi só no último ano, quando eu comecei a estudar para o vestibular, que me dei conta de que eu poderia não só me tornar física, mas como também poderia ser astrônoma/astrofísica e alinhar meu desejo por entender a natureza com a minha paixão pelo cosmos.
Na época só existia a graduação em Astronomia no Rio de Janeiro, mas na USP existia a possibilidade de fazer a graduação em Física e me habilitar em Astronomia. E foi exatamente esse meu caminho.
Vindo de uma escola pública bastante precária da grande São Paulo, poucas foram as pessoas que acreditaram que eu poderia conseguir entrar na maior universidade da América Latina. Das poucas, mas essenciais, pessoas que acreditaram no meu potencial, posso citar minha mãe e meus irmãos, algumas amigas que estavam na mesma luta que a minha e algumas professoras, principalmente a professora de física Mônica e a professora de matemática Alessandra. Na época, eu estudava durante a manhã num curso técnico, à tarde estudava para o vestibular e à noite eu frequentava o ensino médio. Aos fins de semana eu acordava às 4h00 da manhã para ir trabalhar na feira, a fim de ajudar minha família e poder custear as viagens de ônibus e trem para estudar.
Foram tempos de muita dedicação e esforço, mas enfim passei no vestibular logo na primeira tentativa e entrei na licenciatura em física em 2005. Tive muitas dificuldades para me adaptar longe de casa e para atingir as notas exigidas pelo curso, visto minha defasada formação em escola pública. Entretanto, me mantive firme no curso e no final de 2006 eu comecei a fazer Iniciação Científica (IC) com o professor Laerte Sodré Jr, de forma voluntária. Somente em 2008, quando mudei da licenciatura para o bacharelado, que consegui uma bolsa do CNPq para que eu pudesse desenvolver minha pesquisa e custear meus gastos na universidade.
Em 2009 eu precisei começar a trabalhar fora da universidade, o que ocasionou minha demora em terminar o curso. Assim, foi somente ao final do primeiro semestre de 2011 que conclui minha graduação em física!
Ainda em 2011 comecei meu mestrado e tive a primeira oportunidade de levar meu trabalho em um evento internacional. Em 2012 tive a oportunidade de trabalhar por 3 dias em um dos maiores observatórios do mundo, o Observatório de La Silla. Em 2013 eu defendi minha dissertação e logo dei início ao doutorado, o qual estou em vias de finalizar.
Durante meu doutorado eu tive muitas dificuldades de desenvolver minha pesquisa, principalmente pelo fim dos programas de incentivo aos estágios de doutoramento no exterior, que culminaram na dificuldade de acesso ao dados que eu precisava.
Hoje, cerca de 13 anos depois que eu de fato comecei essa jornada pela física/astronomia, eu vejo que meu sonho ainda está longe de ser concluído, mas que já sou muito vitoriosa por tudo o que conquistei ao longo desses anos.
MM360: Atualmente, qual é a sua função e principais responsabilidades?
Patricia: Atualmente eu estou em fase final do doutorado. Ainda, faço hoje parte de 3 projetos científicos internacionais pioneiros: J-PAS, J-PLUS e S-PLUS. O J-PAS está em fase final de comissionamento, já começando a produzir dados de ciência. O J-PLUS já está em pleno funcionamento, sendo que o primeiro release de dados públicos serão divulgados em breve. Já o S-PLUS está também em fase final, com seu artigo fundamental (do qual faço parte) para ser publicado nos próximos meses.
Fora da vida acadêmica, faço parte do grupo PyLadies SP. O grupo tem foco em difundir o uso da linguagem de programação Python para as mulheres, fortalecendo a presença feminina nos meios científicos e tecnológicos.
Recentemente, comecei a trabalhar fazendo Ciência de Dados, utilizando os conhecimentos técnicos e científicos obtidos ao longo do mestrado e doutorado. Tem sido uma experiência muito enriquecedora e que tem me mostrado novas faces da ciência.
MM360: Durante o curso e a carreira, teve desafios por ser mulher em uma área profundamente masculina? Quais foram e o que fez para superá-los?
Patricia: Eu não tinha ideia de que existia tantos preconceitos de gênero na ciência até que eu entrei na graduação. Até aquele momento, os meus maiores desafios tinham sido sociais, visto que vim de uma família simples da periferia de São Paulo.
Eu percebi que teria que quebrar diversas barreiras quando notei que minha opinião não era levada em conta pelos meus colegas quando precisávamos desenvolver algum trabalho ou relatório. Ou quando os mesmos questionavam os métodos pelos quais eu teria obtido uma boa nota em uma determinada disciplina. Ainda, quando eu ouvia que eu deveria utilizar roupas decotadas se eu quisesse passar em uma disciplina ministrada por algum professor homem. Ainda, pude notar a forma como as mulheres eram tratadas no curso quando os professores fingiam não me ouvir durante as aulas ou quando diziam que eu “não sabia matemática por ser uma mulher”.
A época da graduação foi a que eu mais tive que lidar com os preconceitos explícitos. Quando isso acontecia, eu tentava me manter firme e focada no meu objetivo, que era aprender. Na medida do possível, eu tentava ignorar os comentários desrespeitosos e preconceituosos.
Também me ajudou muito desenvolver minha pesquisa de IC. Se no Instituto de Física eu me sentia muitas vezes inadequada, quando eu estava no Instituto de Astronomia e Geofísica, pesquisando e aprendendo, eu sentia que ali era meu lugar e que eu não deveria deixar nada interromper meu caminho. Eu sabia que para quebrar esse estigma eu precisaria estudar muito e continuar fazendo meu trabalho com maestria. Só assim eu poderia não só mostrar o quanto eu era/sou capaz, como também demonstrar que nós mulheres podemos sim fazer ciência.
MM360: Atualmente, você faz parte do grupo PyLadies SP. Poderia compartilhar o que é esse projeto e como você atua nele?
Patricia: Eu conheci o grupo no final de 2015, mas foi somente em abril de 2016 que participei pela primeira vez de um evento organizado pelo grupo. E foi paixão à primeira vista! As PyLadies possuem capítulos por diversos lugares do mundo e todos têm a missão de ensinar Python à mulheres e fortalecer a presença feminina na tecnologia.
O capítulo das PyLadies em São Paulo tem, desde setembro de 2015, realizado diversos cursos de Python, do básico ao avançado, para mulheres das mais diversas áreas, classes sociais e regiões de São Paulo. Já ministramos cursos para meninas de 8/9 anos e até senhoras da 3a idade.
Uma mulher que participa de um curso das PyLadies será convidada, em momento futuro, para atuar como monitora num próximo curso oferecido. Sempre frisamos que não é necessário ser uma especialista em Python para poder ajudar uma outra mulher que está começando a descobrir o ‘mundo pythônico’. Todas nós aprendemos juntas. Ainda, após alguns eventos de monitoria, convidamos as ex-alunas para ministrar o curso, mostrando que a iniciativa pode ser auto-sustentável e que toda mulher tem algo a ensinar à outra mulher.
Durante os 2 anos e meio que tenho atuado como PyLady, já fui monitora e instrutora de diversos cursos de Python, além de ter sido uma das fundadoras do grupo SciPy-SP, para estudos voltados para o Python científico.
MM360: Sabemos que as mulheres ainda são minoria nas áreas de tecnologia, matemática e física. Porém, o mercado, como um todo, vem mudando. Para você, quais ações podem incentivar a presença feminina nessas áreas.
Patricia: Eu vejo sim um aumento, ainda que pequeno e vagaroso, na proporção de mulheres nas áreas de ciência e tecnologia. Eu acredito que grupos de empoderamento e fortalecimento feminino para aquelas que já estão na área ou queiram entrar são fundamentais para criar um ambiente mais propícios às mulheres. Hoje temos as PyLadies, as Django Girls, Rail Girls e diversos outros coletivos voltados a dar suporte e ser um ambiente onde se experimenta de fato o significado da palavra sororidade, que tem contribuído significativamente para o aumento da presença feminina nessas áreas.
As empresas e as universidades também precisam criar ambientes favoráveis, onde as mulheres se sintam seguras e respeitadas. Onde ela possa se desenvolver sem ter que demonstrar eficiência 2 ou 3 vezes maior do que seus pares para, assim, ter uma chance de ser entendida como capaz.
Ainda, precisamos também incentivar as meninas para as ciências e exatas desde muito cedo. É necessário gastarmos tempo e esforços mostrando às meninas exemplos fortes de mulheres cientistas que driblaram barreiras e desafios, precisamos fazer com que as meninas tenham cada vez mais modelos a seguir, de modo que elas entendam que podem ser o que quiserem.
Outrossim, precisamos educar nossos meninos para respeitar as meninas e mulheres, para que eles aprendam desde cedo a respeitá-las, dando o devido valor aos conhecimentos e capacidades das mesmas.
MM360: Para você, qual o papel do meio acadêmico para o empoderamento das mulheres?
Patricia: A academia é o local onde se produz conhecimento de ponta. Por que não também produzir ‘mudanças de ponta’?
A academia deve, assim como as empresas, criar ambientes favoráveis ao desenvolvimento das capacidades intelectuais de quaisquer pessoas, independente do gênero. As universidades deveriam gerir programas inclusivos e de conscientização da importância e benefícios da diversidade. Ainda, é importante a criação de canais de comunicação onde as mulheres que sofrem preconceitos possam fazer suas denúncias, sendo de fato ouvidas e auxiliadas.
A academia costuma liderar tendências nas diversas áreas do conhecimento. Se a academia gerar esses ambientes favoráveis e mostrar, através de pesquisas e indicadores, o quanto as práticas inclusivas podem beneficiar as empresas e o crescimento da sociedade como um todo, a atual situação pode ser modificada com mais força.
MM360: Deixe alguma dica para mulheres que sonham em atuar na área da Astronomia ou qualquer outra área predominantemente masculina.
Patricia: Ainda estamos longe da situação ideal, onde todas nós tenhamos as mesmas chances que os homens nas áreas de ciência e tecnologia. Apesar disso, eu acredito que nós somos também a chave da mudança, pois se não levantarmos nossas vozes e gritar a plenos pulmões que nós podemos, ninguém nos dará nada de graça.
Faça seu trabalho com primor e com dedicação, independente dos ruídos. Seja forte, mire seu objetivo e siga firme. Vai acontecer sim diversos desvios na sua trajetória, você poderá enfrentar muitos preconceitos e pessoas que irão duvidar da sua capacidade. Às vezes, até você pode duvidar. Mas mantenha-se firme. Você já é uma mulher incrível e inteligente, não deixe ninguém te dizer o contrário pois só você conhece seus caminhos e suas batalhas.
E estude, sempre e muito. A educação é uma ferramenta muito poderosa, que poderá abrir as portas do seu sonho, mesmo que a porta pareça estar emperrada.
Por último, você não precisa lutar sozinha. Procure outros mulheres no seu curso, na sua área, no seu trabalho. Crie uma rede de apoio para ti e para outras mulheres em situação semelhante. Juntas, nós somos muito mais fortes e conseguiremos quebrar esse paradigma, mostrando que o mundo é todos e de todas.