A trajetória de uma cientista mulher
Por Márcia Barbosa*
Nasci em uma família de classe média baixa e sempre estudei em escola pública. Apesar disso, em casa, éramos motivados a ler e a explorar o universo. O meu pai, eletricista, consertava tudo, e eu, curiosa, sempre o ajudava. Quando cursava o ensino médio na Escola Estadual Marechal Rondon, em Canoas (RS), tive a oportunidade de trabalhar no laboratório de ensino. Eu passava parte da noite montando experimentos que seriam usados pelos professores em suas aulas. Era maravilhoso o processo de descobrir como as coisas no mundo tinham uma razão de ser.
Foi aí, neste local de poucos recursos, mas de muitas aventuras, que decidi ser cientista. No início, meus pais ficaram desapontados, pois, como eu era uma boa aluna, esperavam que eu buscasse uma profissão economicamente mais rentável: medicina ou engenharia. Eu fui persistente, pois viver com poucos recursos não era uma dificuldade para mim, e eu estava em busca de um sonho: ser física.
Até o ensino médio, não percebia que ser mulher era um problema para ter uma carreira. No primeiro dia de aula na universidade, notei que havia algo estranho. Éramos minoria. Quando as dificuldades com as disciplinas apareciam, pensava: “Isto não é para mim, eu devo ser uma impostora”. Mas, como venho de uma família de teimosos, perseverei. Eu sabia que, para ser notada, eu deveria trabalhar mais do que os homens, e foi exatamente isso que eu fiz. Na minha formatura, eu era a única mulher.
Durante o mestrado e o doutorado, reconheci que teria que mostrar o meu trabalho com mais afinco do que meus colegas homens. Percebi e segui por este caminho. Fui a todas as conferências que se apresentavam e, em cada uma delas, tentava mostrar o meu trabalho. Para a minha banca de doutorado, solicitei ao meu orientador que convidasse pesquisadores exigentes e reconhecidos. Eu sabia que, ao me apresentar bem para este público, formaria uma reputação. Lembro que um deles foi tão agressivo que a minha mãe, que também assistia à apresentação, queria bater nele.
No pós-doutorado, fui aos Estados Unidos, na Universidade de Maryland, para trabalhar com uma pessoa muito conhecida e igualmente exigente. Foram tempos difíceis, mas fundamentais para a minha carreira. Foi o momento de construir pontes que seriam instrumentais no meu regresso ao Brasil.
Ao voltar ao Brasil, fui contratada como docente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foi aí que percebi que os caminhos como pesquisadora mulher seriam mais complexos. Eu comecei a competir pelas ideias, pelos estudantes e pelo dinheiro. Imediatamente, notei que os homens formavam uma rede que repassava, entre si, bons estudantes, contatos e indicações. Eu já tinha uma boa rede de contatos construída durante o doutorado e o pós-doutorado e, assim, pude construir o meu grupo, apesar da enorme pressão que sofria para continuar “sob as asas” do meu antigo orientador de doutorado. A decisão de construir o meu grupo de trabalho foi certamente a mais difícil e mais importante da minha carreira.
Mulheres STEM
As mulheres na ciência, e particularmente nas áreas de Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática (Science, Technology, Engineering and Mathematics – STEM), enfrentam as barreiras normais de todas as mulheres em profissões de alta demanda de trabalho: conciliar carreira e filhos, ser firme e, por isso, acabar sendo considerada histérica ou em crise de TPM, ser preterida para progressões, comitês por colegas menos qualificados etc.
O diferencial é que, como somos poucas, há um discurso não verbalizado de que física e mulheres são líquidos imiscíveis. Temos que, cotidianamente, lutar contra os estereótipos de gênero que afastam as meninas das áreas de exatas desde a infância. Temos que estimular nossas meninas e jovens a manipular equipamentos, experimentar o universo que nos rodeia.
Hoje, já sou uma cientista estabelecida. Tenho um grupo de estudantes e colaboradores que percebem que diversidade de gênero, raça e história social são instrumentos fundamentais para o desenvolvimento científico. Na minha trajetória, o fato de ser resiliente, persistente e firme em meus propósitos foi muito importante. Hoje, luto para que mulheres mais tímidas também possam ser cientistas. Afinal, há muitos homens tímidos na ciência. Por que as mulheres precisariam de tantas qualidades adicionais para sobreviver nessa área?
Felizmente, no Brasil, já há iniciativas para estimular que mais meninas se interessem pelo tema. Uma delas, promovida pelo CNPq, fornecia bolsas para jovens do ensino médio fazerem pesquisa na universidade. Hoje o CNPq mantém verbetes com histórias inspiradoras de nossas precursoras na ciência. Ao mesmo tempo, organizações privadas têm financiado projetos nesse tema. Em alguns anos, veremos com mais clareza os resultados dessas iniciativas no aumento de profissionais nas exatas.
Como o futuro é agora, urge montarmos uma rede de contatos de jovens engenheiras, físicas, químicas, matemáticas, informáticas, para que o mundo empresarial saiba que existimos e que estamos no mercado. Uma iniciativa neste sentido já vem sendo pensada por pesquisadoras da UFRGS. Tudo está bem no início ainda, mas acredito que será uma plataforma poderosa para conectar mulheres experientes e jovens nessa área.
* Márcia Barbosa é professora, pesquisadora, física e diretora do Instituto de Física da UFRGS.
Foto: Julian Dufort for the Lóreal Foundation