“A liderança das empresas precisa estar comprometida com a equidade de gênero”, diz especialista
“Se individualmente não acreditarmos no potencial das mulheres e na necessidade de políticas que corrijam as distorções geradas por uma cultura patriarcal ao longo de séculos, dificilmente teremos a liderança das empresas com participação mais igualitária entre homens e mulheres. Será que somente as mulheres sem filhos deveriam ter as mesmas oportunidades de carreira e igualdade salarial com os homens? E quais são os principais desafios das empresas quando o assunto é promover a liderança feminina?”
Esse depoimento é da Regina Madalozzo, especialista em economia de gênero do Insper. Conversamos com ela, entre outros assuntos, sobre os desafios das empresas para promover a liderança feminina e a importância da educação para a equidade de gênero. Confira a entrevista!
MM360: Quais são os principais desafios das empresas ao promover a liderança feminina?
Regina: O primeiro grande desafio que as empresas enfrentam é o de reconhecer que o tema é válido para quase a totalidade dos nossos setores e locais de trabalho. Ainda hoje persiste uma crença de que temos uma meritocracia estabelecida e essa meritocracia evidencia – inequivocamente – as melhores pessoas para ocuparem os cargos de liderança. Contudo, ao termos a possibilidade de relativizar o estado atual, é possível perceber que as decisões individuais – executivas e pessoais – são muitas vezes conduzidas por nossa forma de pensar e nossos vieses. Ao contratar, avaliar e promover pessoas, temos um processo inconsciente que pode estar gerando uma distorção na forma como avaliamos homens e mulheres. Se esta distorção prejudica um dos grupos, então deveríamos nos preocupar com a meritocracia de fato e corrigir estes possíveis desvios que tornam mais difícil uma mulher do que um homem chegar a um cargo na liderança.
Passado este desafio inicial, é hora de nos depararmos na sensibilização da liderança e, em seguida, dos colaboradores em geral. É essencial que a liderança das empresas esteja comprometida para que a árdua tarefa de equalizar o acesso aos cargos mais altos para homens e mulheres. Neste ponto é interessante ressaltar que as medições (sobre presença em cargos, tempo de trabalho, tempo para promoção, avaliações, etc) são muito importantes para o diagnóstico da situação individual de cada empresa.
Após o diagnóstico, então as ações mais concretas (sensibilização de fato – que é contínua, oficinas e treinamentos, divulgação e comprometimento no cumprimento de políticas que permitam a equidade de gênero, entre outras) possam ser implementadas.
MM360: Para aquelas empresas que ainda não começaram a se atentar pra esse assunto, o que pode conscientizá-las? Como despertá-las?
Regina: Eu vejo como muito importante a ação de grandes modelos, empresas que já estão atuando internamente. Essas empresas podem divulgar o que fazem, os resultados, como acompanham suas ações. A ONU Mulheres é uma grande parceira para empresas que desejam se aprofundar nestas questões. Com os Princípios de Empoderamento das Mulheres (os chamados “WEPs”), as empresas podem traçar um plano para entender melhor sua própria situação com relação à equidade de gênero e possíveis alternativas para correção de distorções não providenciais do sistema.
Os movimentos, em especial o Movimento Mulher 360, têm um grande potencial mobilizador ao tornar pública e visível a questão da liderança feminina. A participação em grupos e movimentos como este faz com que as empresas tenham acesso às boas práticas do mercado e tenham sucesso mais rápido na questão da equidade entre os gêneros dentro de seu próprio sistema.
MM360: De que forma os colaboradores podem conscientizar seus líderes? E como os líderes podem conscientizar os colaboradores para que mais mulheres ocupem cargos de liderança?
Regina: Eu acredito que a forma mais natural de acontecer é da liderança conscientizar seus colaboradores. Se a liderança estiver convencida de que é necessário um trabalho de sensibilização com relação à temática de equidade de gênero na empresa, a própria liderança tem o poder de conduzir discussões, programas, políticas que possam reverter essa situação.
Já quando a percepção é somente dos colaboradores, mas não eles não têm o apoio da liderança para discutir ou propor mudanças que beneficiem a equidade, é bem mais difícil. Uma possibilidade é acesso a um líder mais aberto e que permita uma conversa ampliada a respeito das evidências que se encontram na empresa e possível alternativas para a mesma. Mesmo assim, é um caminho muito mais difícil de ser trilhado.
MM360: De forma geral, as empresas estão mais conscientes?
Regina: Se pensarmos no mundo como um todo, temos muitos avanços das empresas com relação ao tema equidade na liderança. Ao olharmos especificamente para o Brasil, se compararmos com 20 anos atrás, sim, elas estão. Entretanto, se olharmos os últimos 5 ou 10 anos, o tema “gênero e liderança” entrou na pauta, mas as discussões e resultados efetivos ainda estão em um patamar abaixo do que seria esperado.
Um exemplo disso é o uso abusivo da justificativa de licença-maternidade para pagar menos ou promover menos as mulheres. A licença-maternidade – e a paternidade – são parte do investimento social na próxima geração e não um ônus sem consequências benéficas para os negócios.
Na mesma linha, ainda vemos discussões sobre a questão de liderança que afirmam de forma simplista que as mulheres não querem assumir cargos na liderança. Já seria tempo de termos aprofundado essa questão: será que as mulheres realmente não querem estes cargos ou o esforço que é demandado delas é maior do que o esforço demandado para os homens para chegar no mesmo lugar? Se for este segundo, precisamos entender os mecanismos que estão dificultando a ascensão feminina e desarmá-los.
MM360: Algum outro país que você considere exemplo quando o assunto é promoção da liderança feminina nas empresas? Por qual motivo?
Regina: Os países nórdicos continuam sendo os exemplos, embora nem mesmo lá exista a completa igualdade de oportunidades para homens e mulheres. Muitos dos avanços que vemos nesses países têm relação com uma cultura que promove uma maior igualdade entre os sexos desde cedo. Crianças são tratadas de forma mais equânime – independentemente de seu sexo – e isso faz com que cresçam em um ambiente que não potencialize as diferenças físicas nem a identificação com um “sexo frágil” ou “sexo forte”.
MM360: Há algo que a sociedade possa fazer para contribuir para que tenhamos mais mulheres em cargos de liderança nas empresas?
Regina: A sociedade é o conjunto das pessoas. Se individualmente não acreditarmos no potencial das mulheres e na necessidade de políticas que corrijam as distorções geradas por uma cultura patriarcal ao longo de séculos, dificilmente teremos a liderança das empresas com participação mais igualitária entre homens e mulheres. Então, uma das formas que podemos conquistar a equidade entre os sexos é por meio da educação desde muito jovens, incentivando meninas a assumirem seu lado mais quantitativo, mas analítico e até mais assertivo. Ao mesmo tempo, permitir que os meninos desenvolvam sua sensibilidade e se sintam parte de uma família e grupo onde todos são responsáveis pelo cuidado.
MM360: Uma matéria recente, do The New York Times, citou que a desigualdade salarial começa a “aparecer entre o final da faixa dos 20 e a metade da faixa dos 30 anos, segundo dois novos estudos. Ou, em outras palavras, quando muitas mulheres têm filhos. Mulheres que não são casadas e não têm filhos continuam recebendo salários parecidos com os homens”. De que forma as empresas podem lidar com esse desafio?
Regina: Do meu ponto de vista, esses resultados apontam para a falta de diversidade mesmo quando você inclui as mulheres na liderança. Por que somente as mulheres sem filhos têm maior similaridade salarial com os homens? Será que elas assumiram um perfil mais “masculino” para conseguir crescer nas empresas? E, se assim for, o impacto da diversidade de gênero não está potencializado, pois temos mulheres se comportando como homens, o que não traduz em diferenças construtivas.
A questão do cuidado é aqui ressaltada. Se a responsabilização do cuidado recair somente ou mais pesadamente nas mulheres, podemos concluir que não existirá um período próximo em que homens e mulheres conquistem a liderança com o mesmo esforço. Se os homens não precisam abrir mão de ter uma família para chegar até a liderança, mas as mulheres precisam, este é um preço bastante alto, então é compreensível que “elas desistam” de chegar lá.
As empresas podem e devem assumir seu papel social de incentivar pais e mães a participarem igualmente da vida de seus filhos. Seja por meio de horários flexíveis de trabalho, disponibilização de home office, licença parental, creche para todos os colaboradores, independentemente de seu sexo. Pode-se questionar se a empresa tem algum retorno – além de estar fazendo o que é socialmente mais correto – ao implementar estas políticas. O que a prática nos mostra é que este tipo de benefício retorna para a empresa via maior satisfação dos colaboradores com seu próprio emprego, com diminuição da rotatividade (que é um custo bastante relevante no Brasil) e com um ambiente de trabalho muito mais agradável a todos.