Foto posada de Mariana Covre. Ela é uma mulher branca com cabelos levemente ondulados e compridos, está maquiada, usa uma blusa vermelha de mangas longas e sorri.

Mariana Covre

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Advogada especialista em Compliance de Gênero e Ambientes Regulados.

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Lei 'Não é Não': engajando o setor privado na luta contra a violência de gênero

19 janeiro 2024

O ano de 2023 teve como desfecho mais uma lei de avanço de gênero no Brasil. A lei federal nº 14.786 traz duas ações relevantes no reforço a medidas de apoio e proteção às mulheres vítimas de todo e qualquer tipo de constrangimento e violência nos espaços públicos e privados, chamando, como parte fundamental para sua execução, o setor privado de entretenimento e lazer.

Começam a ter validade em julho de 2024 e são destinadas a casas noturnas, boates, locais fechados que realizem espetáculos musicais, shows e atividades esportivas, que tenha venda de bebida alcoólica, sem prejuízo dos estabelecimentos já abarcados por leis locais específicas, como as vigentes em São Paulo, no Distrito Federal e em Belo Horizonte.

A primeira ação normativa da lei é a institucionalização, em âmbito nacional, do que pode ser visto como um protocolo, sistema ou código de proteção às mulheres, no âmbito do seu direito de ir e vir ao lazer noturno “sem medo”, chamado “Não é Não”.

Exemplos Internacionais: ‘No Callem’ e ‘Ask for Angela’

Uma ação proativa que já vinha sendo adotada em diversas localidades, no Brasil e no mundo, seja por imposição legislativa, seja por espontaneidade de empresários.

Na Espanha, não apenas a existência do protocolo “No Callem” foi decisivo no caso Daniel Alves, em 2022, inclusive para as apurações criminais, mas, principalmente, a sua adoção por parte do estabelecimento local e o pronto preparo para realizar as medidas que assegurassem proteção à vítima e às evidências e provas do fato apontado.

“Quando sofremos uma agressão, nossa cidade não deve nos julgar, mas nos acompanhar e defender”, afirmou, na época, a prefeita de Barcelona, Ada Colau.

Os responsáveis pela criação do protocolo “No Callem” afirmaram que ele inovou ao envolver o setor privado de lazer na luta contra a violência de gênero. Pesquisas apontavam que, localmente, uma em cada dez agressões sexuais contra mulheres ocorria justamente em bares e casas noturnas.

Na Inglaterra, o protocolo denominado “Ask for Angela” foi implementado, em 2023, como uma senha para que todo um sistema seja acionado a partir de um funcionário ou funcionária do estabelecimento.

Legislação Estadual: São Paulo, Distrito Federal e Belo Horizonte na vanguarda

No Brasil, o estado do Rio Grande do Sul, onde os dados de violência sexual de gênero são elevados, a noticiada campanha “He for She”, que percorre bares noturnos para informar sobre direitos a uma vida sem violência, revelou-se uma exitosa experiência de prevenção.

O Estado de São Paulo já vem, de forma bastante robusta, com esse esforço, por meio da Lei n° 17.621/2023 e decreto regulamentador, tendo instituído o selo “Estabelecimento Amigo da Mulher”.

No Distrito Federal, a Lei nº 7.241/2023 instituiu o Protocolo “Por Todas Elas”. E, no âmbito municipal, Belo Horizonte, por meio da Lei nº 11.560/2023, instituiu o protocolo “Mulheres Seguras”. Essas normas mais abrangentes em relação à lei federal, englobando restaurantes, hotéis, shoppings center.

Selo ‘Não é Não – Mulheres Seguras’: reconhecimento aos estabelecimentos exemplares

Não bastasse a institucionalização ampla de um protocolo nacional, o “Não é Não”, a lei federal traz uma segunda ação que se apresenta como medida de engajamento e premiação aos estabelecimentos que a cumprirem com exemplaridade. Está criado o selo “Não é Não – Mulheres Seguras”. Melhor sinalização de segurança para as mulheres consumidoras que queiram frequentar, sem medo, casas noturnas, ainda não há.

O selo apresenta-se como uma verdadeira certificação para os estabelecimentos e para suas frequentadoras, alertando, indicando e chancelando os locais que não somente apoiam e fazem parte da causa humanitária de enfrentamento à violência contra a mulher, como os que, de fato, estejam preparados para pronta aplicação de medidas de proteção de gênero e, mais, afiançados pelo poder público como ambientes seguros para as mulheres.

Pesquisa realizada em 2022, chamada “Bares sem Assédio”, é bastante reveladora quando conclui que apenas 8% das mulheres frequentam esse tipo de estabelecimento (noturno e que não tenha o selo) sozinha, por medo da violência de gênero. Sendo que 2/3 das brasileiras consultadas relataram já ter sofrido algum tipo de assédio em bares, restaurantes e casas noturnas. E os dados pioram entre as mulheres que trabalham ou já trabalharam nesses ambientes, aumentando para 78% as que relatam já ter sofrido assédio sexual.

O legislador, atento a essas estatísticas alarmantes, prioriza o foco na vítima mulher. O olhar normativo vem sobre um interregno temporal valiosíssimo no âmbito da violência contra as mulheres que acontece em locais fechados, que é justamente o momento entre a ocorrência até a chegada do Estado-poder com seu aparato de segurança pública. O legislador compreendeu que neste exato momento é necessário haver uma pronta blindagem e acolhimento humanizado da mulher vítima naquele local onde ela se encontra e onde a violência é perpetrada, além de ser uma ocasião decisiva a ser considerada nas evidenciações investigativas para posteriores apurações criminais.

Para isso, há, aqui, um intencional chamamento, como autor e executor de medidas de pronto atendimento, segurança, acolhimento e encaminhamento da vítima, dos empreendimentos privados de entretenimento e lazer que passam a fazer parte relevante do aparato social de proteção às mulheres.

Impacto na Economia: o que empresários têm a perder?

E aí a pergunta não deve ser o que o empresário tem a ganhar. A pergunta deve ser o que o empresário que não aderir ao protocolo ‘Não é Não’ tem a perder diante da maior parte da população brasileira, eleitorado e consumidores, as mulheres, se a economia feminina é um mercado anual que movimenta mais de R$ 150 trilhões.

Mais do que uma legislação do direito consumerista, onde o foco é na satisfatória relação com clientes na prestação de um serviço no interior de um estabelecimento, estamos diante de uma norma que afeta ao direito à diversidade, equidade e inclusão, onde o foco é na mulher vítima e, então, as pautas de gênero encontram respaldo e proteção jurídico-legal.

As medidas selecionadas pelo legislador, mesmo as obrigatórias, não apresentam-se complexas, porque não se distanciam da obrigação humana a que já se vincula moral e eticamente os locais que têm como negócio a circulação e atendimento de pessoas e a consequente busca pela satisfação de clientes.

Educação e Engajamento: o caminho para a mudança cultural

No pilar educacional, há a obrigação de treinar equipes, assegurando, pelo menos, uma pessoa qualificada para atender prontamente ao protocolo “Não é Não”, o que aperfeiçoa o atendimento ao cliente, em especial à cliente mulher, oferecendo um serviço de qualidade agregado à segurança.

Há, ainda nesse fronte informativo, a obrigação de dar amplo conhecimento às mulheres sobre a forma de acionar o protocolo e os números de telefone de contato da Polícia Militar e da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180.

No aspecto humano da relação com pessoas, a obrigação do empresário e sua equipe é acolher e proteger imediatamente a vítima, quando observada possível situação de violência ou constrangimento, checando a necessidade de assistência e afastando o agressor.

Na intermediação com o poder público, a obrigação é o já existente acionamento da Polícia Militar ou do agente público competente, frente a um fato de violência, colaborando na identificação e evidenciação de provas de conduta criminosa, quanto a possíveis testemunhas do fato; isolamento do local específico onde possam existir vestígios da violência; guarda e acesso ao sistema de câmeras de segurança que sirvam de material probatório da ocorrência.

Como incremento às medidas obrigatórias, o legislador, primando pela articulação de esforços públicos e privados no enfrentamento à violência de gênero, propõe e estimula, ainda que de modo facultativo, outras medidas que podem ser adotadas pelos empresários.
Ao avaliar seu público e seus serviços, o empresário pode adotar, de modo comunicacional criativo, outras ações que entender cabíveis no reforço à preservação da dignidade e integridade física e psicológica de suas clientes, o que contribui para subsidiar a atuação dos órgãos de saúde e de segurança pública eventualmente acionados a posteriori.

Na mesma linha informacional e criativa, o estabelecimento pode, também, criar um código próprio, divulgado nos sanitários femininos, para que as mulheres possam alertar a equipe do estabelecimento sobre a necessidade de ajuda, para pronta adoção das providências necessárias.

Por fim, a medida que talvez possa ser considerada drástica na relação com o cliente, a de retirar do estabelecimento o frequentador ofensor e impedir o seu reingresso até o término das atividades, aparece como medida sugerida, mas não obrigatória. O que não descaracteriza a obrigação de, no protocolo, afastar vítima e agressor que permaneçam no interior do mesmo estabelecimento.

Essas medidas são, por certo, uma grande movimentação ou mobilização de “autoajuda” que, nas palavras de Silvia Federici, em ‘Além da Pele’, “nos ajuda [nós mulheres] a discutir socialmente questões antes consideradas tabus.”

Se fôssemos trazer o olhar da autora para esta legislação, expandiríamos a lupa para além de ver como medida que envolve empreendimentos privados em suas relações de consumo. Vai além! Humanamente, é voltada para enfatizar a realidade da “objetificação sexual dos corpos femininos” que existe em ambientes públicos e privados, o que exige o estado de “vigiar e punir”, de Foucault, para influenciar mudanças comportamentais, social e culturalmente arraigadas, que precisam de diversos atores atuando conjuntamente.

Seria uma atenção à visão de “mulheres como corpos”, expressada, aqui, por meio de uma norma que disciplina, em última análise, o comportamento relacional de homens em relação às mulheres, salvaguardando a luta delas contra essa apropriação de seus corpos e a violência associada a ela, em todos tipos de ambientes e espaços. Ainda que o faça por meio de atores diversos, incluindo os empresários e seus estabelecimentos, estes privilegiados na posição de influenciar condutas e comportamentos nos seus espaços.

Lei do ‘Não é Não’: uma mobilização coletiva para a dignidade e segurança das mulheres

A lei é, pois, o resultado da percepção de que as experiências e vivências mais íntimas das mulheres, supostamente particulares, são na verdade assuntos de grande importância para o Estado. E, agora, assunto também do setor privado.

A sociedade se escandaliza cada vez mais com os casos reais e índices de violência contra a mulher, mas o legislador reconheceu que ainda há certa banalização da questão, mesmo estando diante de uma das violações de direitos humanos mais graves e ao mesmo tempo mais presentes em nossa sociedade.

A exposição de motivos do projeto de lei originário encara esse cenário social como sendo de “cifras ocultas dessa prática criminosa, por afetar profundamente a intimidade, a privacidade, e seus efeitos físicos, sexuais e psíquicos na vida das pessoas, especialmente de mulheres e meninas, independentemente da determinação biológica”.

É preciso, portanto, trazer diversos atores e autores para avançarmos e, para isso, o setor privado talvez seja o mais relevante e decisivo deles a articular e conjugar esforços com o Estado-poder. Privilegiado na sua posição de salvaguardar a mulher vítima que o escolhe como ambiente para exercer o seu direito de ir e vir sem medo e sem violência, por exemplo.

Nessa toada de mobilização, a primeira ratio da legislação – como deve ser -, é a educação, justamente para possibilitar esse um grande “movimento”, no sentido de informar, sensibilizar, engajar e conjugar esforços, prevendo uma sanção que, num primeiro momento, possa parecer “frágil” para seu descumprimento, a advertência.

A ideia é impulsionar pessoas, estabelecimentos e organizações para olharem para a causa e aplicarem o “Não é Não” simplesmente porque ela é socialmente relevante, independentemente da imposição legal e sanção.

E ganharão lugar de destaque os empreendimentos que estiverem liderando essa toada, o que, por vias reflexas, agregará aos seus negócios e serviços impacto reputacional e de imagem, logo, mais frequentadoras e consumidoras frente à prestação de serviços de qualidade e com segurança.

Leia a coluna anterior de Mariana Covre

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